24 de fevereiro de 2021

ARTIGO: SOBRE HOMENS E LOBISOMENS - SER NEGRO NA NOSSA CIDADE




O que significa ser negro em Senhor do Bonfim? O mesmo que em outras partes do Brasil: enfrentar o racismo e resistir para permanecer vivo contra investidas de mortes fĆ­sicas, sociais e psicológicas, evocando nossa forƧa ancestral e competĆŖncia artĆ­stica, polĆ­tica ou da ordem de outras das mĆŗltiplas inteligĆŖncias. 


Hoje acordei com um texto do estimado site Minha Cidade que compara Daniel - um homem negro, uma pessoa com "deficiĆŖncia mental" - a um lobisomem. 


A analogia com a mĆŗsica de ZĆ© Ramalho, aparentemente banal, traz um grave problema de ordem sócio histórica. NĆ£o hĆ” licenƧa poĆ©tica que justifique. Por quĆŖ? Nossos ancestrais foram sequestrados na Ɓfrica, arrastados para o Brasil e chegaram em Bonfim, onde tambĆ©m foram escravizados nas fazendas de polĆ­ticos e coronĆ©is que a cidade venera em bustos, livros, redes sociais e saudosos relatos. 


Uma das estratĆ©gias da dominação branca sobre nossos antepassados negros era a animalização. Prova disto Ć© o infeliz termo "mulata", que animaliza as mulheres negras e as hipersexualiza; ou o xingamento "macaco", tĆ£o conhecido na história do futebol. Com esta estratĆ©gia de nos comparar a animais, reais ou lendĆ”rios e mitológicos, a branquitude tentou nos colocar como inferiores, assim como fez com Ota Benga, nos EUA, e Sarah Baartman, na Europa, pois assim era mais fĆ”cil tentar perpetuar as dominaƧƵes sobre nossos corpos e mentes. 


Considerados próximos a animais, as polĆ­ticas genocidas estariam justificadas, apoiadas por braƧos da seguranƧa e atĆ© por algumas religiƵes.  Ɖ esta estratĆ©gia, alimentada pelo racismo estrutural, que faz o bonfinense ser menos sensĆ­vel Ć s mortes, violĆŖncias fĆ­sicas e simbólicas assim como todas as opressƵes sofrida por corpos negros.  


Daniel pagou um preƧo alto por ser um homem negro com descaminhos sociais e teve um corpo insepulto. E quem nos garante que a "loucura" de Daniel nĆ£o foi causada pelo racismo? A literatura e as estatĆ­sticas tĆŖm demonstrado a forƧa do racismo no adoecimento mental do povo negro. Importante apontar que Daniel foi um dos homenageados do Minha Cidade no mĆŖs da ConsciĆŖncia Negra de 2019, porque de fato foi figura emblemĆ”tica que caracterizava o cenĆ”rio urbano de Bonfim. 


Minhas pesquisas tambĆ©m jĆ” foram base para algumas publicaƧƵes do Minha Cidade e agradeƧo. Mas escrever este texto Ć© um dever dominical para um homem preto, filho de pais negros, e em honra das memórias negras ancestrais deste rincĆ£o; Ć© tambĆ©m em nome de crianƧas e adolescentes negros de pele retinta e cabelo Black Power, que jĆ” sofrem preconceito por ser quem sĆ£o e nĆ£o devem jamais experimentar a infeliz comparação a animais, tendo sua humanidade aniquilada. 


Vale lembrar que prĆ”ticas como esta, embora dissimuladas, tĆŖm sido comuns em alguns locais da cidade, em certos grupos e instituiƧƵes, porque o racismo estĆ” se "sofisticando", mas cabe a nós problematizar e/ou denunciar, para a construção de uma Bonfim igualitĆ”ria e cada vez menos preconceituosa, inclusive nas representaƧƵes, para que nossos corpos negros nĆ£o sejam mais subalternizados em espaƧos hegemĆ“nicos, protegidos pelo pacto narcĆ­sico da branquitude. Se nós, pessoas pretas, nĆ£o o fizermos, quem o farĆ”? EntĆ£o, vamos celebrar nossas revoltas, como a Revolta da Chibata e a Revolta dos BĆŗzios; vamos evocar Mariinha Rodrigues e outras mulheres que minaram o projeto do Brasil racista e escravocrata, assim como o Minha Cidade jĆ” fez muito positivamente em algumas ocasiƵes, precisamos reconhecer.  


Vamos trazer ao debate aquilo que a escola, o livro didĆ”tico e muitos dos nossos professores esconderam durante muito tempo em atendimento a um projeto de paĆ­s que pretendeu aniquilar o povo negro e que felizmente nĆ£o deu certo, porque os quilombos, rurais e urbanos, resistiram. E cĆ” estamos nós! NĆ£o somos lobisomens. Espero que o site, que goza de grande prestĆ­gio entre nós, possa refletir sobre a publicação, em respeito Ć  memória de Daniel e ao povo negro da "Nossa Cidade". 


Eu seguirei lendo a pĆ”gina, que cumpre um importante papel na história recente do municĆ­pio. AtĆ© porque este texto nĆ£o pretende particularizar o problema, que estĆ” na raiz da identidade nacional, mas gerar reflexĆ£o e debate sobre como as pessoas pretas sĆ£o tratadas nesta cidade, no Brasil e no mundo colonizado. O resto Ć© mĆŗsica. 


Reginaldo Carvalho

Senhor do Bonfim, 21.02.2021. Uma data que pode ser lida de trƔs para frente.

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