O que significa ser negro em Senhor do Bonfim? O mesmo que em outras partes do Brasil: enfrentar o racismo e resistir para permanecer vivo contra investidas de mortes fĆsicas, sociais e psicológicas, evocando nossa forƧa ancestral e competĆŖncia artĆstica, polĆtica ou da ordem de outras das mĆŗltiplas inteligĆŖncias.
Hoje acordei com um texto do estimado site Minha Cidade que compara Daniel - um homem negro, uma pessoa com "deficiĆŖncia mental" - a um lobisomem.
A analogia com a mĆŗsica de ZĆ© Ramalho, aparentemente banal, traz um grave problema de ordem sócio histórica. NĆ£o hĆ” licenƧa poĆ©tica que justifique. Por quĆŖ? Nossos ancestrais foram sequestrados na Ćfrica, arrastados para o Brasil e chegaram em Bonfim, onde tambĆ©m foram escravizados nas fazendas de polĆticos e coronĆ©is que a cidade venera em bustos, livros, redes sociais e saudosos relatos.
Uma das estratégias da dominação branca sobre nossos antepassados negros era a animalização. Prova disto é o infeliz termo "mulata", que animaliza as mulheres negras e as hipersexualiza; ou o xingamento "macaco", tão conhecido na história do futebol. Com esta estratégia de nos comparar a animais, reais ou lendÔrios e mitológicos, a branquitude tentou nos colocar como inferiores, assim como fez com Ota Benga, nos EUA, e Sarah Baartman, na Europa, pois assim era mais fÔcil tentar perpetuar as dominações sobre nossos corpos e mentes.
Considerados próximos a animais, as polĆticas genocidas estariam justificadas, apoiadas por braƧos da seguranƧa e atĆ© por algumas religiƵes. Ć esta estratĆ©gia, alimentada pelo racismo estrutural, que faz o bonfinense ser menos sensĆvel Ć s mortes, violĆŖncias fĆsicas e simbólicas assim como todas as opressƵes sofrida por corpos negros.
Daniel pagou um preƧo alto por ser um homem negro com descaminhos sociais e teve um corpo insepulto. E quem nos garante que a "loucura" de Daniel nĆ£o foi causada pelo racismo? A literatura e as estatĆsticas tĆŖm demonstrado a forƧa do racismo no adoecimento mental do povo negro. Importante apontar que Daniel foi um dos homenageados do Minha Cidade no mĆŖs da ConsciĆŖncia Negra de 2019, porque de fato foi figura emblemĆ”tica que caracterizava o cenĆ”rio urbano de Bonfim.
Minhas pesquisas também jÔ foram base para algumas publicações do Minha Cidade e agradeço. Mas escrever este texto é um dever dominical para um homem preto, filho de pais negros, e em honra das memórias negras ancestrais deste rincão; é também em nome de crianças e adolescentes negros de pele retinta e cabelo Black Power, que jÔ sofrem preconceito por ser quem são e não devem jamais experimentar a infeliz comparação a animais, tendo sua humanidade aniquilada.
Vale lembrar que prĆ”ticas como esta, embora dissimuladas, tĆŖm sido comuns em alguns locais da cidade, em certos grupos e instituiƧƵes, porque o racismo estĆ” se "sofisticando", mas cabe a nós problematizar e/ou denunciar, para a construção de uma Bonfim igualitĆ”ria e cada vez menos preconceituosa, inclusive nas representaƧƵes, para que nossos corpos negros nĆ£o sejam mais subalternizados em espaƧos hegemĆ“nicos, protegidos pelo pacto narcĆsico da branquitude. Se nós, pessoas pretas, nĆ£o o fizermos, quem o farĆ”? EntĆ£o, vamos celebrar nossas revoltas, como a Revolta da Chibata e a Revolta dos BĆŗzios; vamos evocar Mariinha Rodrigues e outras mulheres que minaram o projeto do Brasil racista e escravocrata, assim como o Minha Cidade jĆ” fez muito positivamente em algumas ocasiƵes, precisamos reconhecer.
Vamos trazer ao debate aquilo que a escola, o livro didĆ”tico e muitos dos nossos professores esconderam durante muito tempo em atendimento a um projeto de paĆs que pretendeu aniquilar o povo negro e que felizmente nĆ£o deu certo, porque os quilombos, rurais e urbanos, resistiram. E cĆ” estamos nós! NĆ£o somos lobisomens. Espero que o site, que goza de grande prestĆgio entre nós, possa refletir sobre a publicação, em respeito Ć memória de Daniel e ao povo negro da "Nossa Cidade".
Eu seguirei lendo a pĆ”gina, que cumpre um importante papel na história recente do municĆpio. AtĆ© porque este texto nĆ£o pretende particularizar o problema, que estĆ” na raiz da identidade nacional, mas gerar reflexĆ£o e debate sobre como as pessoas pretas sĆ£o tratadas nesta cidade, no Brasil e no mundo colonizado. O resto Ć© mĆŗsica.
Reginaldo Carvalho
Senhor do Bonfim, 21.02.2021. Uma data que pode ser lida de trƔs para frente.
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