CANUDOS: 115 ANOS DE UM MASSACRE

 

No final do século XIX, poucos anos após a proclamação da República, o sertão da Bahia foi palco de um dos mais extraordinários exemplos de insubordinação popular que a história brasileira já registrou: o arraial de Canudos, ou Belo Monte. 

Fundado pelo beato cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, e ostentando como regra capital o trabalho e a oração, a comunidade de Canudos converteu-se, em pouco mais de três anos, num dos maiores centros populacionais do sertão da Bahia, sendo responsável, inclusive, por sua autosustentação. Relatos da época dão conta do alto nível de prosperidade a que chegou o arraial conselheirista. Constatou Nina Rodrigues, em 1897, que Antônio Conselheiro havia, em curto prazo, elevado Canudos "de estância deserta e abandonada em uma vila florescente e rica". Manuel Benício, testemunha ocular dos fatos, notou que "às margens frescas do rio [o Vaza Barris que banhava Canudos], eram cultivadas plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas, etc... os pequenos cultores da terra possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares". A pecuária, com acento na caprinocultura,  assumia tamanho papel na economia do Belo Monte que um importante político da época, o deputado César Zama, chegou  a afirmar que "aquela povoação proporcionava ao Estado pingue fonte de receita do imposto de exportação sobre peles". Nos anos quarenta do século passado, Manuel Ciríaco, ex-morador do arraial, contou ao jornalista Odorico Tavares, da revista O Cruzeiro, que "no tempo de Antônio Conselheiro havia de tudo, por estes arredores... Até cana de açúcar de se descascar com a unha nascia bonitona por estes lados. Legumes com abundância e chuvas à vontade". Outro remanescente de Canudos, Honório Villa Nova, não conseguia esconder a nostalgia, quando o assunto era o cotidiano do Belo Monte: "Grande era o Canudos do meu tempo [disse ele a Nertan Macedo]. Quem tinha roça tratava de roça. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos, tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar ia rezar". Este conjunto de informações oriundas de pessoas de dentro e de fora de Canudos dá uma dimensão aproximada do quão importante foi  a comunidade canudense, do ponto de vista político, social e econômico.

As elites brasileiras, contudo, não viram com bons olhos a experiência de Canudos. No final de 1896, acusando os conselheiristas de insubordinação contra a República, o Estado Brasileiro declara guerra à "aldeia sagrada" dos sertanejos. Para exterminar o arraial, tido como monarquista, o Governo Federal, com o apoio da Igreja Católica e dos fazendeiros, mandou ao sertão da Bahia nada menos que quatro expedições militares, totalizando-se um contingente de cerca de doze mil homens em armas, mais da metade do efetivo do Exército, naquele momento. A capacidade bélica dos sertanejos, inicialmente subestimada, surpreendeu os adversários. A cada batalha travada, as forças legais sofriam novas baixas e o poder de fogo dos canudenses saía fortalecido. As três primeiras expedições, que juntas totalizavam mais de dois mil soldados, foram fragorosamente esmagadas.

As sucessivas derrotas puseram em pânico o Governo da República que passou a ver em Canudos um perigo cada vez mais real e assustador. Impunha-se, portanto, que se tomassem medidas mais enérgicas. Afinal de contas – acreditava-se – era o destino da República que se encontrava em jogo. O Governo não tardou e uma nova expedição foi mandada às terras sertanejas, desta feita com quase dez mil soldados, além dos reforços posteriores. As elites, então, puderam respirar aliviadas. Canudos, finalmente, estava liquidado. No conflito, morreram cinco mil soldados e todos os habitantes do Belo Monte, estes últimos estimados em quinze mil almas. Deste modo, Canudos entrou para a história como o maior e mais violento massacre já ocorrido em terras brasileiras.

Ao fechar sua obra maior – Os Sertões – livro em que narrou o episódio de Canudos, o ensaísta Euclides da Cunha assim se expressou: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo na precisão integral do termo, caiu no dia 5 (de outubro de 1897), ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. Era a constatação, por parte de um membro da elite letrada do Brasil, de que o extermínio material de Canudos não implicava necessariamente no extermínio da utopia de Antônio Conselheiro. Canudos, de fato, não morreu. E como diz o poeta, ele “está vivo na união, tá na fé no coração/ Tá no homem, na mulher/... tá na terra na alegria/no amor, na rebeldia”.

José Gonçalves do Nascimento
Presidente da Academia de Letras e Artes de Senhor do Bonfim - ACLASB
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