ARTIGO: DIÁRIO DE BORDO DE UM ENFERMO

Não imaginaria que um ano iniciado com abraços, sorrisos, espocar de fogos e cruzamento de taças terminaria em um leito de hospital. Procuro no quarto cinzento, entre gemidos, a Cruz do Senhor Jesus Cristo, não tanto para tentá-lo, mas para que ele me recorde entre lábios, as sete últimas palavras que ele, sofrido, pronunciou no madeiro, em meio à sua Paixão e Morte. E à medida que relembro as suas palavras finais, tentei e tento acrescentar as minhas palavras imperfeitas e também doloridas, neste um mês em que me encontro “gemendo e chorando neste Vale de lágrimas” (“gementes et flentes in hac lacrimarum valle”) como nos consola a bela “Salve Regina” medieval:

(1) Mateus 27:46 nos diz que perto da hora nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: “Eli, Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” No leito do hospital busquei várias vezes o olhar de Jesus, compassivo, de quem experimentara no corpo a dor e a morte, tentado a sentir-me entregue à fraqueza do velho corpo em sensação de silêncio e abandono.

(2) "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lucas 23:34). Em momentos outros recriminei-me a mim mesmo. Pedi o toque da mão salvífica de Jesus Cristo, e tinha a sensação de não ser fiel à compaixão divina.

(3) "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso" (Lucas 23:43). Meu Deus, adia em mim a desesperança e a sensação de que a vida do sofredor está por um fio!

(4) "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lucas 23:46). Inúmeras vezes abandonei-me nas mãos de Deus, como aquele que pode dar a última palavra...

(5) "Mulher, eis aí o teu filho!" e "Eis aí tua mãe!" Ai de mim, ai de nós, se não fossem as dedicadas e atenciosas mulheres, santas, esposa, filhas e amigas que não me deixavam desfalecer...

(6) "Tenho sede" (João 19:28). Experimentei vezes incontáveis . buscando saciar a minha sede, a bebida prevista pelo Salmo 69:21: "Puseram fel na minha comida e para matar-me a sede deram-me vinagre."

(7) "Está consumado!" (João 19:30). Dificil, muito difícil, viver esta última palavra de Jesus na Cruz: havia sempre a sensação de que a minha fragilidade corporal estava distante, bem distante, da missão que um dia Deus colocou no meu coração, chamando-me à vida...

Uma outra reflexão que nasce da experiência do acamado: Nós, em nosso dia-a-dia, não nos damos conta de pequenos elementos, que nos passam desapercebidos, mas que ganham uma força e uma importância extraordinária ao enfermo: a bolachinha salgada, seca, sem gordura alguma, triturada entre os dentes, com sabor de maná, quando a falta de apetite foge em meio à noite, após a chegada da solitária e interminável madrugada; o imenso bem que fazem uma Televisão desligada, um rádio aposentado, diante da angústia do leito incapacitador; a importância de um sanitário em que ao lado do chuveirinho substituto do antigo bidé se tenha colocado um ralo para o escoamento das águas dos quase-banhos improvisados; a força e a segurança devolvidos por uma engenhoca simplória, um andador de três pés, que com o tempo aprendemos a dirigir entre espaços apertados sem comprometer o joelho incapaz...

Bendito seja o Senhor, nosso Deus, que nos conforta do alto da Cruz, com suas belas e pungentes sete últimas palavras e nos ensina, pela experiência diária, a tornar importantes e necessárias coisas do dia a dia que julgamos, em ignorância, que nada possuem de valor!

Paulo Machado, 05-02-2016
Terminando 2015 nos braços da Cruz e ali permanecendo nos primeiros meses de 2016!
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